01 Setembro 2022
“Superar essa falange global de defensores da indústria do petróleo exigirá muito mais força política do que o campo ambiental foi capaz de reunir até agora. Para salvar o planeta de um inferno muito literal na Terra e proteger as vidas de bilhões de seus habitantes, devemos resistir à tirania do petróleo com a mesma tenacidade que seus defensores têm para protegê-la. É preciso trabalhar incansavelmente, assim como eles, para eleger políticos afins e avançar na agenda legislativa. Somente através da luta para reduzir as emissões de carbono hoje podemos ter certeza de que as gerações mais jovens viverão em um planeta habitável.” A reflexão é de Michael T. Klare, em artigo publicado por Brecha, 26-08-2022. A tradução é do Cepat.
Longe de ter atingido o tão prognosticado peak oil, estima-se que nos próximos anos sejam extraídas quantidades recordes de combustíveis fósseis, cujo carbono acabará rapidamente na atmosfera, com consequências críticas. A guerra na Europa e o lobby do petróleo pioraram a situação, que hoje também se manifesta em uma espiral inflacionária brutal. Na estratégia das potências e nas contas do armazém, o petróleo ocupa um lugar cada vez mais importante.
Pode parecer difícil de acreditar, mas há apenas 15 anos, falava-se muito do peak oil ou “pico do petróleo”, esse momento de máxima produção mundial de petróleo após o qual, com a diminuição das reservas mundiais, o uso do ouro negro começaria uma diminuição irreversível. Depois veio o fraturamento hidráulico, ou fracking, e a própria noção de peak oil praticamente desapareceu. Em vez disso, alguns analistas começaram a falar da “demanda máxima de petróleo”, um momento – não muito distante, se dizia – em que a propriedade de veículos elétricos seria tão difundida que a necessidade de petróleo estaria quase extinta, mesmo se ainda houvesse muito petróleo para extrair. No entanto, de acordo com a Administração de Informações sobre Energia dos Estados Unidos (AIE), em 2020 os veículos elétricos representaram menos de 1% da frota mundial de veículos leves e devem atingir apenas 20% do total em 2040. Portanto, o pico de demanda de petróleo permanece uma miragem distante, o que nos deixa profundamente presos à tirania do petróleo, com todas as suas perigosas consequências.
Para ter alguma perspectiva, vale lembrar que, naqueles dias do início do século anteriores ao fracking, muitos especialistas estavam convencidos de que a produção mundial de petróleo atingiria um pico diário de talvez 90 milhões de barris em 2010, depois cairia para 70 milhões ou 80 milhões de barris/dia no final dessa década. Em outras palavras, não teríamos escolha a não ser iniciar uma rápida transição de nossos sistemas de transporte para o elétrico. Isso seria muito perturbador no início, mas a essa altura da década de 2020 estaríamos bem encaminhados para um futuro de energia verde, com emissões de carbono muito mais baixas e uma taxa mais lenta de aquecimento global.
Agora, compararemos esses cenários otimistas com os dados mais recentes da AIE. Neste momento, a produção mundial de petróleo gira em torno dos 100 milhões de barris/dia e prevê-se que atinja 109 milhões de barris em 2030, 117 milhões em 2040 e impressionantes 126 milhões em 2050. Pouco resta, então, dessa conversa sobre o inescapável peak oil e a rápida transição para a energia verde.
Por que se espera que o consumo mundial de petróleo atinja tais recordes é complexo de explicar. Mas, sem dúvida, o principal fator-chave foi a introdução da tecnologia do fracking, que permite a exploração de gigantescas reservas de xisto que antes eram consideradas inacessíveis. Pelo lado da demanda, havia (e ainda há) uma preferência em nível mundial – liderada pelos consumidores norte-americanos – por veículos que consomem muito combustível, como os SUVs e os 4x4s. Nos países em desenvolvimento, isso é acompanhado por um mercado em constante expansão para caminhões e ônibus a diesel. Depois, há o crescimento global das viagens aéreas, o que aumenta consideravelmente a demanda por combustível de aviação. Acrescentemos a isso os esforços incansáveis da própria indústria do petróleo para negar o consenso científico em torno das mudanças climáticas e obstruir os esforços globais para reduzir o consumo de combustíveis fósseis (Ver “Una jugada por delante”, Brecha, 14-01-2022).
A pergunta que devemos nos fazer agora é esta: quais são as consequências de uma equação tão preocupante para o nosso futuro, a começar pelo impacto ecológico?
Sabe-se que as emissões de dióxido de carbono (CO2) são a principal fonte de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, e que a queima de combustíveis fósseis é responsável pela maior parte dessas emissões de CO2. Os cientistas também nos alertaram que, sem uma redução drástica e imediata dessa combustão – uma redução destinada a evitar que o aquecimento global ultrapasse 1,5 grau Celsius em relação aos tempos pré-industriais –, haverá consequências catastróficas. Só nos Estados Unidos, isso incluirá a desertificação completa da região oeste do país (que, segundo um estudo publicado este ano na Nature, hoje experimenta sua pior seca em 1.200 anos) e as inundações das principais cidades costeiras, incluindo Nova York, Boston, Miami e Los Angeles.
Agora consideremos o seguinte: de acordo com a AIE, em 2020 o petróleo foi a maior fonte de energia do mercado mundial – atendendo cerca de 30% da demanda de energia – e projeta-se que, no nosso curso atual, continuará sendo a fonte número um de energia do mundo, possivelmente até 2050. Por ser um combustível com alto teor de carbono (embora menor que o carvão), o petróleo foi responsável por 34% das emissões globais de carbono em 2020, e essa participação deve aumentar para 37% até 2040. A essa altura, a combustão de petróleo será responsável pela liberação de 14,7 milhões de toneladas métricas de gases de efeito estufa, o que provocará temperaturas médias globais cada vez mais altas.
Com o aumento das emissões de CO2 pelo uso do petróleo, não há chance de ficar dentro do limite de 1,5 grau Celsius ou evitar o aquecimento catastrófico deste planeta, com tudo o que este pressagia. As impressionantes ondas de calor experimentadas até esta altura do ano da China à Índia, da Europa ao Chifre da África e dos Estados Unidos ao Brasil são apenas uma pequena prévia do nosso futuro (Ver “Lo que no miden los termómetros”, Brecha, 11-11-2021).
As ondas de calor não são a única consequência perigosa da nossa crescente dependência do petróleo. Devido ao seu papel vital no transporte, na indústria e na agricultura, o petróleo sempre teve imensa importância geopolítica. De fato, houve dezenas de guerras e conflitos armados por causa da sua posse e pela renda colossal que gera. As raízes de todos e cada um dos conflitos recentes no Oriente Médio, por exemplo, podem ser atribuídas de uma ou de outra forma a tais disputas. Apesar da grande especulação sobre como os cenários do pico de demanda de petróleo poderiam teoricamente acabar com tudo isso, o petróleo continua a moldar os assuntos políticos e militares globais.
Para apreciar sua persistente influência, basta que consideremos as múltiplas conexões entre o petróleo e a guerra em curso na Ucrânia.
Para começar, é pouco provável que Vladimir Putin estivesse alguma vez em condições de ordenar a invasão de um país grande e bem armado se a Rússia não fosse um dos principais produtores de petróleo do mundo. Após a implosão da União Soviética em 1991, o que restava do Exército Vermelho estava em ruínas, mal conseguindo esmagar uma insurgência étnica na Chechênia. No entanto, depois de se tornar presidente da Rússia em 2000, Putin impôs o controle estatal sobre grande parte da indústria do petróleo e gás da Rússia, usando suas receitas de exportação para financiar a reabilitação e modernização desse exército. De acordo com a AIE, as receitas da produção de petróleo e gás natural representaram, em média, 43% das receitas anuais totais do Estado russo entre 2011 e 2020. Em outras palavras, os combustíveis fósseis permitiram às forças de Putin acumular grandes reservas de armas, tanques e mísseis.
Não menos importante: depois que seu exército fracassou na tomada de Kiev, Putin certamente não teria tido a capacidade de continuar a luta se não fosse o dinheiro que recebe diariamente das vendas de petróleo para o exterior. Embora as exportações russas de petróleo tenham caído um pouco devido às sanções ocidentais impostas após o início da guerra, Moscou conseguiu encontrar clientes na Ásia, principalmente a China e a Índia, dispostos a comprar o excesso de petróleo antes destinado à Europa. Mesmo que a Rússia esteja vendendo esse petróleo a preços reduzidos, o preço sem desconto aumentou tão drasticamente desde o início da guerra – com o Brent, o padrão da indústria, subindo de US$ 80 o barril no início de fevereiro para US$ 128 o barril em março – que a Rússia está ganhando mais dinheiro agora do que antes da invasão. De fato, economistas do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo de Helsinque determinaram que, durante os primeiros 100 dias da guerra, a Rússia ganhou aproximadamente US$ 60 bilhões com suas exportações de petróleo, mais do que suficiente para pagar suas operações militares na Ucrânia.
Para punir ainda mais Moscou, os 27 membros da União Europeia concordaram em proibir todo o petróleo russo entregue em navios-tanque até o final de 2022 e em interromper suas importações por oleodutos até o final de 2023 (uma concessão feita ao líder húngaro Viktor Orbán, que obtém a maior parte de seu petróleo através de um oleoduto russo). Isso, por sua vez, eliminaria os US$ 23 bilhões por mês que os países da União Europeia têm gastado com essas importações, mas poderia, no processo, elevar ainda mais os preços globais, um benefício óbvio para Moscou. A menos que a China, a Índia e outros compradores não-ocidentais possam ser persuadidos (ou de alguma maneira obrigados) a interromper suas importações da Rússia, o petróleo continuará a financiar a guerra contra a Ucrânia.
As conexões entre o petróleo e a guerra na Ucrânia não terminam aí. Na verdade, os dois elementos se combinaram para produzir uma crise global diferente de qualquer outra na história recente. Como a humanidade se tornou tão dependente dos produtos petrolíferos, qualquer aumento significativo no preço do barril repercute na economia global, afetando quase todos os aspectos da indústria e do comércio. Naturalmente, o transporte sofre o maior impacto, com um encarecimento de todas as suas formas, desde os deslocamentos diários até as viagens aéreas. E, como dependemos tanto das máquinas movidas a petróleo para cultivar nossos alimentos, qualquer aumento no preço do petróleo também se traduz automaticamente em um aumento no custo dos alimentos, um fenômeno devastador que está ocorrendo em todo o mundo, com consequências nefastas para os pobres e os trabalhadores.
Os preços dizem tudo: de 2015 a 2021, o Brent ficou em média entre US$ 50 e US$ 60 o barril, o que ajudou a estimular a compra de carros e manteve as taxas de inflação baixas. Os preços começaram a subir há um ano, alimentados pelas crescentes tensões geopolíticas, incluindo as sanções ao Irã e à Venezuela, bem como os distúrbios internos na Líbia e na Nigéria, todos grandes produtores de petróleo. De qualquer forma, no final de 2021 o preço do petróleo atingiu apenas 75 dólares por barril. Mas, uma vez que a crise na Ucrânia eclodiu no início deste ano, o preço disparou rapidamente, atingindo US$ 100 o barril em 14 de fevereiro e finalmente se estabilizando (se essa palavra pode ser usada nessas circunstâncias) na taxa atual, cerca de US$ 115. Este grande aumento de preços, o dobro da média de 2015 a 2021, aumentou de modo substancial os custos das viagens, da comida e dos fretes, o que piora a situação criada pelos problemas na cadeia de abastecimento provocados pela pandemia da Covid-19 e alimenta um tsunami de inflação.
Uma maré inflacionária deste tipo só pode provocar angústia e dificuldades, principalmente para as populações desfavorecidas do mundo, o que leva a distúrbios generalizados e a protestos cada vez maiores. Para muitos, essas dificuldades só foram agravadas pelo bloqueio russo às exportações de grãos da Ucrânia, o que contribuiu significativamente para o aumento dos preços dos alimentos e para a disseminação da fome em regiões do mundo já com problemas. No Sri Lanka, por exemplo, a revolta com os altos preços dos alimentos e dos combustíveis, combinada com a rejeição da inepta elite governante do país, provocou semanas de protestos em massa que culminaram na fuga e na renúncia do presidente. Os furiosos protestos contra os altos preços dos combustíveis e alimentos também se espalharam para outros países. A capital do Equador ficou paralisada durante uma semana no final de junho por tal revolta e pela repressão que se seguiu, deixando pelo menos cinco mortos e mais de 400 feridos (Ver “Doce días de pie”, Brecha, 24-06-2022).
Nos Estados Unidos, a preocupação com o aumento dos preços dos alimentos e dos combustíveis é vista como uma grande desvantagem para o presidente Joe Biden e para os democratas à medida que as eleições legislativas de novembro se aproximam. Os republicanos tentam claramente explorar a ira popular contra a inflação em suas campanhas. Em resposta, Biden, que prometeu durante a campanha eleitoral fazer do combate às mudanças climáticas uma prioridade da Casa Branca, percorre o mundo inteiro em busca de fontes adicionais de petróleo em uma tentativa desesperada de reduzir os preços nos postos de gasolina.
No seu país, liberou 180 milhões de barris de petróleo das reservas estratégicas nacionais de petróleo, um vasto reservatório subterrâneo criado após os “choques petrolíferos” da década de 1970 para amortecer tempos como este e descartou as legislações ambientais que proibiam o uso no verão de uma mistura à base de etanol conhecida como E15, que contribui para a poluição atmosférica durante os meses mais quentes. No exterior, ele procurou renovar os contatos com o regime outrora pária de Nicolás Maduro na Venezuela, que já foi um grande exportador de petróleo para os Estados Unidos. Em março, dois altos funcionários da Casa Branca se reuniram com Maduro naquilo que foi visto como uma tentativa de restaurar essas exportações.
Na expressão mais controversa desse impulso, em julho, Biden viajou para a Arábia Saudita, o maior exportador de petróleo do mundo, para se encontrar com seu líder de fato, o príncipe herdeiro Mohamed bin Salman. Conhecido como MBS, o príncipe herdeiro tem sido visto por muitos, inclusive pelos analistas da CIA (e o próprio Biden), como o responsável pelo assassinato, em outubro de 2018, de Jamal Khashoggi, um dissidente saudita que morava nos Estados Unidos e era colunista do Washington Post.
Biden insistiu em que suas principais razões para se encontrar com o MBS eram reforçar as defesas regionais contra o Irã e combater a influência russa e chinesa no Oriente Médio. “Esta viagem serve para posicionar mais uma vez os Estados Unidos nesta região para o futuro”, disse a jornalistas na cidade saudita de Jeddah em 15 de julho. “Não vamos deixar um vazio no Oriente Médio para que a Rússia ou a China o preencham”, acrescentou.
Mas a maioria dos analistas independentes sugere que seu objetivo principal era garantir uma promessa dos sauditas de aumentar substancialmente a produção diária de petróleo, uma medida com a qual eles só concordaram depois que Biden concordou em se reunir com MBS e, assim, acabar com seu status de pária em Washington. De acordo com relatos da mídia, os sauditas concordaram em aumentar sua taxa de produção, mas também prometeram adiar o anúncio desse aumento por várias semanas, para evitar constranger o presidente dos Estados Unidos.
É revelador que o “the climate president” (o presidente do clima) estivesse tão disposto a se encontrar com o líder saudita para colher o benefício político de curto prazo dos preços mais baixos da gasolina antes da eleição. De fato, o petróleo ainda desempenha um papel importante nos cálculos da Casa Branca. Embora os Estados Unidos não dependam mais das importações de petróleo do Oriente Médio para grande parte de suas próprias necessidades energéticas, muitos de seus aliados, assim como a China, o são. Em outras palavras, de uma perspectiva geopolítica, o controle do Oriente Médio continua tão importante quanto era em 1990, quando George HW Bush lançou a operação Tempestade no Deserto, ou, como em 2003, quando seu filho, o presidente George W. Bush, invadiu o Iraque.
De fato, as próprias projeções do governo estadunidense sugerem que, em todo caso, até 2050 (sim, novamente aquele ano distante!) os membros do Oriente Médio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo poderiam controlar uma parcela maior da produção mundial de petróleo do que hoje. Isso ajuda a explicar os comentários de Biden sobre não deixar um vazio no Oriente Médio. A mesma linha de raciocínio certamente moldará a política dos Estados Unidos em relação a outras áreas produtoras de petróleo, incluindo a África Ocidental, a América Latina e as regiões costeiras da Ásia.
Não é preciso muita imaginação para sugerir, então, que o petróleo provavelmente desempenhará um papel crucial na política interna e externa dos Estados Unidos nos próximos anos, apesar das esperanças de muitos de nós de que o declínio da demanda por petróleo promoverá uma transição para a energia verde. Sem dúvida, Biden tinha toda a intenção de seguir nessa direção quando assumiu o cargo, mas é claro que ele foi dominado pela tirania do petróleo. Pior ainda, aqueles que cumprem as ordens da indústria dos combustíveis fósseis, incluindo praticamente todos os republicanos no Congresso, estão determinados a perpetuar essa tirania a qualquer custo para o planeta e seus habitantes.
Superar essa falange global de defensores da indústria do petróleo exigirá muito mais força política do que o campo ambiental foi capaz de reunir até agora. Para salvar o planeta de um inferno muito literal na Terra e proteger as vidas de bilhões de seus habitantes, devemos resistir à tirania do petróleo com a mesma tenacidade que seus defensores têm para protegê-la. É preciso trabalhar incansavelmente, assim como eles, para eleger políticos afins e avançar na agenda legislativa. Somente através da luta para reduzir as emissões de carbono hoje podemos ter certeza de que as gerações mais jovens viverão em um planeta habitável.
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A persistente tirania do petróleo. Artigo de Michael T. Klare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU